Pesquisa Coletiva
Cinco anos entre os bárbaros: cidade, canção, corpo (1972-77)
Coordenação: Paola Berenstein Jacques (Equipe UFBA)
De que modo as cidades, seus espaços públicos, e os corpos das pessoas que os habitam, usam, praticam e atravessam, são transformados e ativados pela arte? Nos anos 1970, após o encerramento do ciclo histórico dos movimentos artísticos surgidos na década anterior, e durante o período de maior repressão imposto pela ditadura civil-militar que tomou de assalto o país, práticas e ações de re-existência surgiam e se afirmavam à contrapelo, baseadas na exposição libertária dos corpos nas cidades.
Naquele momento, enquanto muitos corpos inimigos do regime eram presos, torturados, mortos e exilados, a maioria das grandes cidades brasileiras vivia processos descontrolados de violência urbana, com remoções crescentes, tendo seus espaços transformados em terra arrasada pelo rodoviarismo e pela especulação imobiliária. No entanto, é exatamente nesse contexto duro e repressivo que outros corpos passavam a afirmar, em contraste, outros modos de vida em suas existências dionisíacas, eróticas, andrógenas, marginais, desbundadas. “Odara ou desce” pode-se ler nas ruas. Presenças incômodas, desafiadoras da ordem estabelecida, e que revelavam uma outra face da política: a potência ritualística do happening, do teatro, do canto e da dança, no momento em que a o discurso verbal era silenciado.
Uma forma de ação política mais próxima da estética, segundo a qual os corpos (e não apenas as mentes desencarnadas) também são vistos como fontes de discursos radicais e questionadores, engendrando horizontes balizados não apenas pela busca de igualdade social, mas também pela exaltação de culturas e de modos de vida historicamente explorados no Brasil, como as dos povos negros e indígenas.
Não por acaso, em 1976, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil criaram um show coletivo em que tomavam para si a expressão “bárbaros” – para invadir a “cidade amada” -, revertendo parodicamente a acusação racista que era feita a eles pelo semanário de esquerda O Pasquim, que os chamavam de “bahiunos”, fundindo a palavra baianos ao nome dos bárbaros que saquearam Roma.
Esse projeto de pesquisa e de extensão universitária se centra na década de 1970, e focaliza o diálogo entre as artes no Brasil – com ênfase na música popular, na canção –, a emergente afirmação cultural figurada nos corpos, e as dramáticas transformação urbanas em nossas cidades, com foco especial na tríade Salvador-Rio de Janeiro-São Paulo. A canção como elo (berro?) articulador entre os corpos rebeldes e as cidades militarizadas. Nossas balizas cronológicas são cinco anos entre duas viagens (“back in Bahia”): o retorno de Caetano e Gil do exílio londrino em 1972, como início do processo em estudo, e a viagem dos mesmos artistas, acompanhados de muitos outros, a Lagos (Nigéria), em 1977, para o Festival de Arte e Cultura Africana ali realizado, como desfecho desses anos “bárbaros”.
Um desfecho que não encerra nada, mas, ao contrário, encuba grandes transformações a seguir, tais como a recuperação de blocos afro em Salvador, como os Filhos de Gandhi, e a gestação de uma outra forma de afirmação da cultura afro-brasileira no espaço da cidade. O que, de alguma forma, está na base da postura afirmativa recente de diversos grupos nos espaços públicos das cidades brasileiras, e que tanto incomodou (e ainda incomoda) os setores mais retrógrados de nossa sociedade.
Nesse arco, o projeto mostra a sua atualidade combativa. Afinal o imenso retrocesso político e moral que vivemos hoje no Brasil revela o sucesso de muitas das ações essencialmente anticolonialistas engendradas naquele período, protagonizadas pelos chamados “desbundados”. Essa arena política e estética está hoje, de novo, muito inflamada. Vivemos permanentemente em guerra, como nos lembra Ailton Krenak. E, é claro, do lado dos bárbaros. “Cidades maravilhosas”, canta Caetano Veloso em Deus e o diabo, e remata: “os pulmões/culhões do meu Brasil”.
O presente projeto é realizado por equipes de pesquisadores de diferentes campos (arquitetura, urbanismo, história, artes, letras, música) de grupos de quatro universidades públicas, sediadas nas três cidades estudadas – UFBA, UNEB, USP e UFRJ – e conta com o apoio da reitoria da Universidade Federal da Bahia, por onde passaram muitos dos atores desta história, ainda pouco narrada, que pretendemos (re)montar, como uma forma de atualizá-la criticamente.
Período
2020-Atual
Equipe
Coordenadores
Eucanaã Ferraz (PPGLEV / UFRJ)
Guilherme Wisnik (FAU / USP)
Paola Berenstein Jacques (PPG-AU / UFBA)
Washington Drummond (Pós-Crítica / UNEB)
Pesquisadores
Adele Belitardo (FAU / USP)
Áurea Pacheco (PGH / UEFS)
Eliana Barbosa (PPG-AU / UFBA)
Eloisa Marçola (PPG-AU / UFBA)
Guilherme Bertissolo (PPGMUS / UFBA)
Luisa Zucchi (FAU / USP)
Marcos Britto (PPG-AU / UFBA)
Rafael Julião (PACC / UFRJ)
Rafaela Izeli (PPG-AU / UFBA)
Silvana Olivieri (PPG-AU / UFBA)
Stelio Marras (IEB / USP)