Mestrado

Performance como lente metodológica e processo de análise para as práticas incorporadas de ação, investigação e experiência urbana

Gábe Maria Pires dos Santos

A pesquisa propõe tensionar e desdobrar maneiras de refletir sobre as corpografias produzidas pela/na ação do corpo na cidade através das práticas urbanas incorporadas. Partindo de investigações fundamentadas na experiência corporal construída no espaço urbano, a performance é tomada como modo de fazer e pensar as relações coimplicadas entre corpo e cidade, como categoria analítica e ação evocadora da experiência urbana. Cruzando proposições realizadas por pesquisadoras/es de diferentes campos nas quais se nota a articulação das noções de corpo, espaço e tempo, pretende-se seguir na construção de análises transdisciplinares que compreendam a cidade como um “campo de processos no qual o corpo está coimplicado” (BRITTO, 2013, p. 37), atualizando a própria noção de cidade.

Para Leda Maria Martins, “o corpo é um portal que, simultaneamente, inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local, ambiente e veículo da memória” (2003, p. 78). Grafada no corpo, a memória torna-se corporeidade, movimento, gesto. Compreendendo o corpo como local de inscrição da memória, e numa aproximação às reflexões sobre as práticas da cidade contemporânea, o corpo poder ser entendido, como local de acúmulo da memória urbana, da experiência construída através de seus movimentos na cidade, tornando o corpo canal de reconhecimento dos saberes urbanos.

É em sentidos similares que Paola Berenstein Jacques (2008) aponta o corpo como local onde se inscreve, em diferentes escalas de temporalidade, a experiência urbana, propondo a errância como prática mobilizadora de percepções corporais para apreensão da cidade contemporânea. A errância se dá como ação desviatória através do caminhar no espaço urbano, tendo a lentidão, a desorientação e a incorporação do erro como fatores determinantes do percurso (JACQUES, 2012). Dessa forma, a errância é uma ferramenta de subjetivação para, a partir de um movimento corpóreo muito próprio, investigar as manifestações dos espaços urbanos e suas reverberações na construção de uma experiência urbana corporificada. Da prática errática resultam as corpografias, a própria memória inscrita no corpo praticante da cidade. As corpografias são como registros cartográficos no corpo ou, como coloca Jacques, registros corpográficos da própria cidade vivida, que fica inscrita e configura o corpo que a experimenta (JACQUES, 2008).

Pensar a corpografia como acúmulo de cartografias corporais nos propõe a compreensão de que o corpo carrega a memória da experiência sensível dos espaços com os quais interage – o indivíduo situa a materialidade de seu corpo e apreende o espaço como resultado de uma experiência. Enquanto se movimenta, constrói em sua corporalidade uma experiência tão própria ao tempo de suas ações e aos atravessamentos provocados por estas.

Na tentativa de compreender a temporalidade das coafetações processuais surgidas pela/na ação do corpo na cidade, penso ser potente a aproximação das práticas desviatórias de ação e investigação urbana, como as errâncias, com noções da performance. Ao propor pensar os contornos de categorias como corpo e espaço, a performance parece ser uma categoria analítica capaz de tocar os entrelaçamentos espaço-temporais entre corpo e cidade.

Entre as ciências sociais e as artes, performance é um termo que acumula sentidos diversos, que se complexificam em camadas múltiplas e se sustentam justamente por suas contradições, interconexões e fricções. Desse modo, os estudos da performance se constituem em um vasto campo de pesquisa que, num geral, tendem sempre a ultrapassar limites disciplinares, deslocando margens. O que se reconhece enquanto comum na maioria das abordagens é que a performance é possibilitada pelo encontro entre diferentes sujeitos em variadas formas de interlocução, nas quais se identificam criação, questionamento e negociação (VAZ, 2014, p. 257); e é percebida enquanto ação que privilegia a presença, estando aberta para inúmeros atravessamentos.

Para Richard Schechner (apud MARTINS, 2003; TAYLOR, 2013), performance é “comportamento restaurado” e todas as atividades humanas podem ser analisadas enquanto performances. Essa “restauração de comportamento” diz respeito a um exercício de trazer à tona memórias corporais, recordando nos movimentos e gestos do corpo experiências que nele foram inscritas anteriormente.

A ideia de incorporação no sentido de “trazer para o corpo” é muito preciosa para compreensão da noção de repertório apresentada por Diana Taylor (2013) ao pensar as práticas corporais de culturas não-letradas, que se tornam memórias corporais e são transmitidas através das corporalidades. O repertório está na efemeridade dos movimentos do corpo, das performances corporais, do que não é possível ser registrado ou totalmente compreendido por signos da visualidade.

Repertório é o inventário de registros corporais das práticas não arquivais, práticas que são executadas no e pelo corpo. “O repertório […] encena a memória incorporada – performances, gestos, oralidade, movimento, dança, canto –, em suma, todos aqueles atos geralmente vistos como conhecimento efêmero, não reproduzível.” (TAYLOR, 2013, p. 49). Numa aproximação possível, identifico as corpografias urbanas como repertório. “A cidade é lida pelo corpo como um conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporalidade” (JACQUES, 2008). Como memória urbana incorporada, a experiência acaba por configurar esse corpo, ainda que de forma involuntária, se tornando visível através de gestos e moveres sutis.

Na interação corpo-cidade, o espaço urbano e o corpo tornam-se permanentes sujeitos da performance (VAZ, 2014). O movimento de trazer para o corpo as coafetações estabelecidas com o espaço urbano, através da ação performática, possibilita a incorporação da experiência. A experiência urbana incorporada, como percepções e memórias corporais reveladas, informa um saber sobre as corporalidades produzidas pela ação do corpo no espaço urbano. Nesse sentido, a performance pode ser compreendida como potência para uma reflexão incorporada sobre a cidade. Pensar por via da performance parece possibilitar uma análise sobre os processos de construção da experiência urbana, das corporalidades produzidas nas interações recíprocas de coafetação entre corpo e cidade e, portanto, da própria cidade.

No processo de pesquisa deverá se desenvolver uma série de performances e/ou procedimentos performativos que possibilitem a experiência de espaços produzidos pela urbanidade, construindo uma abordagem simultaneamente prática, teórica e corporal que permita interlocuções das temporalidades e espacialidades não fixas que se dão no imbricamento entre corpo e cidade.


REFERÊNCIAS

BRITTO, Fabiana Dultra. A ideia de Corpografia Urbana como pista de análise. Redobra, Salvador, EDUFBA, n° 12, ano 4, 2013.
JACQUES, Paola Berenstein. Corpografias urbanas. Vitruvius. Arquitextos, 8, 2008. Disponível em Acesso em: ago. 2021.
JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: Edufba, 2012.
MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. In: Revista Letras, n. 26. PPGL-UFSM, Santa Maria, p. 63-81, 2003.
TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório. Performance e memória cultural nas Américas. Tradução de Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
VAZ, Adriana. Nas tramas da cidade: arquitetura e performance. In: CHAUD, E; SANT’ANNA, T. F. (Orgs.). Anais do VII Seminário Nacional de Pesquisa em Arte e Cultura Visual: [Com]textos, Goiânia, GO: UFG, FAV, p. 257-267, 2014.


Palavras-chave: Performance. Experiência urbana. Corpo e cidade.


ORIENTADORA

Margareth da Silva Pereira


PERÍODO

2021-Atual