Doutorado

A taba contemporânea de Brasília: sobrevivências, primitivismos e colonialidades

Dilton Lopes de Almeida Júnior

“Tratando-se de uma exposição para o público europeu, ainda sensível ao exotismo e ao imprevisto – apesar das facilidades atuais de comunicação -, torna-se necessário provocar, de início, no visitante, um impacto capaz de despertar-lhe a curiosidade e assim predispô-lo a uma identificação momentânea, através da arte, com o modo brasileiro de ser, no passado e no presente, – objetivo da exposição. Isto sem recorrer a artifícios outros de apresentação que não o simples confronto de uma contigüidade insólita -, a taba contemporânea de Brasília. A pré-história parede- meia com a cidade de vida ainda penosa e claudicante, mas símbolo do futuro e da esperança, e prenúncio de um nôvo Brasil.” (Lucio Costa, 1963)

Este resumo fugidio debruça-se sobre duas expografias propostas para o público europeu por Lucio Costa, cuja apresentação da cidade de Brasília para o mundo se fez centralidade: o projeto não realizado para a exposição de 1963, “L’art au Brésil: La taba contemporaine de Brasília” a ser realizada no Petit Palais, em Paris, e o pavilhão brasileiro “Riposatevi”, de 1964 construído para a XIII Trienal de Milão. Ambas as propostas expográficas apresentam-se como pistas investigativas para a reflexão sobre a concepção e construção mítica da cidade de Brasília por seu planejador, Lucio Costa, em outros suportes que não só o projeto da cidade apresentado em seu Memorial para o Plano Piloto.

Interessa-nos, neste percurso, uma investigação histórica que tende à arqueologia (FOUCAULT, [1969] 2004), a partir da desmontagem da noção documental da História, na medida em que olha o documento histórico, sensível às operações historiográficas (CERTEAU, [1975] 2017), como “[…] o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio.” (LE GOFF, 2003, p. 538)

Diante do panorama de exposições de arquitetura realizadas na década de 1960*, as narrativas expográficas concebidas pelo arquiteto e urbanista suíço-brasileiro podem ser entendidas também como montagens anacrônicas de diversos estratos historiográficos. Montagens de imagens do passado colonial e do futuro desejável brasileiros, por exemplo, se fundem no presente e colapsam na apresentação da capital moderna “inventada” por Lucio Costa. Deste modo, visamos complexificar a História da arquitetura e do urbanismo que, organizada em “estilos” e de modo teleológica, apresenta o projeto da capital como símbolo máximo da racionalidade e do progresso, mediante a superação do passado colonial brasileiro em direção a um inexorável futuro moderno, tecnicista e industrial, influenciado pela vanguarda dos debates europeus presentes nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAMs**.

Parece-nos correlato o esforço intelectual do historiador da cultura Aby Warburg, de reconhecer na sobrevivência do antigo – nachleben der antike -, o impulso trágico pagão presente na arte renascentista do quattrocento italiano. Diante da História da arte classicista, nacionalista, eurocêntrica e pacificadora de tensões e disputas instituída no século XVIII, Warburg reivindicava a potência das impurezas, hibridizações e migrações na cultura que sobreviviam aos séculos na memória. Arriscamo-nos a buscar nas montagens expográficas de imagens elencadas por Lucio Costa para apresentar Brasília, outras sobrevivências, anacronismos que perseveram ao tempo, apesar do recalque, e que nos contam sobre as nossas tragédias. Talvez, estivéssemos a demonstrar a hipótese benjaminiana de que todo documento da cultura é simultaneamente um documento da barbárie (BENJAMIN, [1940] 2012) e desse modo, também a reivindicar que “a historia da arte é a luta de todas as experiências ópticas, espaços inventados e figurações.” (EINSTEIN, [1929] 2016, p. 7)

É sobre esse espaço de disputas, para complexificar a expressão utópica de Brasília, que nos cercaremos dos debates dialógicos entre modernidades/colonialidades (MIGNOLO, 2017) e modernismos/primitivismos*** já esboçadas por Abílio Guerra (2017, p. 122-123), como um “urbanismo pau-brasil”, forjado em “uma modernidade possível para uma sociedade que ainda ouve os ruídos recentes da escravidão e do Império, coerente com um país ainda agrícola e de industrialização incipiente.”


Notas

* Elencamos previamente aqui as exposições de Lina Bo Bardi: “Civilização Nordeste”, de 1963, e “A mão do povo brasileiro”, de 1969, no Brasil e a exposição, organizada por Bernard Rudofsky, “Arquitetura sem arquitetos” apresentada em 1964 no Museu de Arte Moderna de Nova York, importante veículo promotor das ideias da arquitetura moderna brasileira para o mundo.

** “A forma de Brasília é um desfecho lógico e natural das trajetórias de Lúcio e Niemeyer. Praticante do neoclássico e do neocolonial, Lucio deu o salto para a vanguarda. E foi a peça central para a arquitetura moderna no Brasil.” (RISÉRIO, 2013, p. 279)

*** Cf. TORGOVNICK, M. Gone primitive: savage intellects, modern lifes. Chicago: University of Chicago Press, 1991; GOLDWATER, R. Primitivism in modern art. Cambridge: Belknap Press, 1986; PRICE, S. Primitive art in civilized places, Chicago: University of Chicago Press, 2002; CLIFFORD, J. The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature, and Art, Cambridge: Harvard University Press, 1988; MOMA, “Primitivism” in 20th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern (Volumes I & II), Nova York: The Museum of Modern Art, 2002.


Referências

BENJAMIN, W. Sobre o conceito de História In.: Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012

CERTEAU, M. A escrita da História. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2004.

GUERRA, A. Arquitetura e natureza. São Paulo: Romano Guerra, 2017.

LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2003.

MIGNOLO, W. Colonialidade: o lado mais obscuro da modernidade In.: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 32, n. 94. 2017.

RISÉRIO, A. A cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34. 2013
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WARBURG, W. A renovação da antiguidade pagã: contribuições científico-culturais para a história do Renascimento europeu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

WARBURG, W. História de Fantasmas para gente grande. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


Palavras-chave: Historiografia. Urbanismo moderno. Colonização.


ORIENTADORA

Paola Berenstein Jacques


PERÍODO

2018-atual