Doutorado

Imaginários de rua: em torno da orla da Barra em Salvador

Rafaela Lino Izeli

Esta é uma pesquisa que ainda se inicia e, por isso, trago aqui mais questionamentos do que afirmações. Parto de inquietações derivadas da minha pesquisa de mestrado, concluída em 2019, que tinha como foco o objeto da rua e as ações e os agentes que contribuíam para a conformação deste espaço – na ocasião delimitado na Avenida Paulista, em São Paulo.

Ciente das diferenças e peculiaridades que cada espaço resguarda, procuro agora me debruçar sobre a orla litorânea da Barra, em Salvador, e as recorrentes reformas e transformações urbanas que este trecho tem passado ao longo dos anos. Imagino uma pesquisa que busque cruzar as práticas, os usos, as dinâmicas e os agentes presentes hoje na orla com os resquícios e vestígios de outros tempos que ali sobrevivem. Imagino, para isso, sobrepor e colocar em diálogo uma pesquisa que decorra do campo, do cotidiano, de uma experiência da cidade contemporânea repleta de memórias e afetos individuais e coletivos, com uma pesquisa historiográfica e documental, mergulhando nos arquivos de Salvador para investigar os projetos, os discursos e os registros que já envolveram tal espaço.

Tomo como ponto de partida o “agora” e, sobretudo, as consequências da última reforma do trecho da orla litorânea da Barra finalizada em 2015, para compreender aquilo que ainda permanece, que denuncia ou resiste de um tempo de “outrora”. Pretenderei falar em temporalidades “[…] que irrompem, emergem no ‘Agora’ e que, portanto, provocam choques de tempos heterogêneos.” (JACQUES, et al., 2017, p.320), que através de resquícios de planos passados materializados ou apenas idealizados, de práticas urbanas hegemônicas ou desviantes, e de planos futuros impostos continuamente, permitiriam com que a cidade fosse permeada por “heterocronias urbanas”.

As ideias de um futuro e de um imaginário que constroem e reforçam essas recorrentes transformações da cidade parecem ser importantes para o que busco investigar. Para isso, procuro dialogar com Alessia de Biase que, assumindo o futuro como um legado das cidades e ressaltando-o como centro de um projeto social, afirma tratar-se de uma construção cultural que usaria desta projeção de uma cidade por vir para justificar ou endossar as transformações urbanas hoje.

A partir da compreensão de que a cidade é algo em contínuo movimento e negociação, “uma cidade que não é um simples cenário das interações do grupo estudado, uma cenografia, mas é um processo material e simbólico de espaços e tempos que são continuamente imaginados, narrados, negociados e projetados pelas pessoas […]”, Biase (2012, p.199) nos convida a pensar em uma Antropologia da Transformação Urbana. Uma antropologia em que os processos materiais e os discursos destas transformações são entrelaçados para entender a complexidade da cidade em três escalas de espaço-tempo: “a cidade herdada; a cidade habitada, ou a cidade do presente que se faz e desfaz continuamente; e por fim, a cidade projetada, que se confronta constantemente com seu horizonte futuro.” (BIASE, 2012, p. 199)

É importante pontuar, ainda, que a possível compreensão da cidade através destas escalas de espaço-tempo se dará sobre um local extremamente turístico da capital baiana, icônico, dotado de uma grande visibilidade. Local este que veio e vem concentrando, por reiteradas vezes, investimentos públicos e privados a fim de transformá-lo em um espaço ainda mais “espetacularizado” (JACQUES, 2010), em que a sua “museificação” e os processos de “patrimonialização” – que tendem a congelar o tempo em um momento dado –, são usados como uma das estratégias destas transformações.

Especificamente ao falar da reforma mais recente da orla, anunciada em 2013 aos moradores da Barra, é importante salientar o objetivo do prefeito ACM Neto (Antônio Carlos Magalhães Neto) em “revitalizar e padronizar a orla da cidade” para receber a Copa do Mundo de 2014, com um projeto que chegaria a custar cerca de 50 milhões de reais e que seria estendido para outros trechos de orla da cidade.

Esta padronização passava pelo que o prefeito chamava de uma “mudança cultural” e uma necessária “educação das pessoas”. Ainda, afirmava que todo o comércio ambulante deveria ser regularizado para evitar “a favelização da orla de Salvador” e mecanismos de “videomonitoramento, equipamentos de qualidade, bons bares e restaurantes” deveriam ser adotados a fim de reduzir a violência na região. Contribuindo para evitar a “favelização” do trecho, junto à implementação do calçadão e restrição da circulação de carros na via, foram demolidos os quiosques existentes das baianas de acarajé e vendedores de coco e suprimidas diversas linhas de ônibus que eram direcionadas ao bairro, procurando diminuir o acesso à praia pelos frequentadores ditos “marginalizados” – motivos de recorrentes denúncias da Associação de Moradores e Amigos da Barra (AmaBarra) por causarem incômodos aos turistas e moradores da orla.


Referências

ARANTES, Otília. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (org.). A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2013, p. 11-74.

BIASE, Alessia de. Por uma postura antropológica de apreensão da cidade contemporânea: de uma antropologia do espaço à uma antropologia da transformação da cidade. In: Revista Redobra. Salvador, n. 10, 2012, p. 190-206.

JACQUES, Paola B.. Zonas de Tensão: em busca de microresistências urbanas. In: JACQUES, P.; BRITTO, F. (org.). Corpocidade: debates, ações e articulações. Salvador: Edufba, v. 1, p. 106-119, 2010.

JACQUES, Paola B. (et al.). Temporalidades. In: JACQUES, P.; BRITTO, F. (org.). In: Corpocidade: gestos urbanos. Salvador: Edufba, 2017, p. 294-349.


Palavras-chave: Orla da Barra. Transformação urbana. Projeção de futuros.


ORIENTADORA

Paola Berenstein Jacques


PERÍODO

2020-atual